1.09.2007
VERA DAISY BARCELLOS
Revista Palmares: Cultura Afro-brasileira,
Editoria Fala Negra, página 84-86
Foto: Irene Santos
Jornalista, militante do Movimento Negro desde a década de 70, editora da revista Tição. Atuou por 16 anos no jornal Zero Hora, foi editora responsável pelos projetos especiais do jornal A Voz da Serra. Assessora de imprensa de Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras/RS.
O telefone toca. Largo o teclado do computador e atendo. É a Fernanda, da Fundação Palmares me ligando. Às voltas com inúmeras tarefas e com o pensamento nos prazos a cumprir, demoro a atender o que ela me pede. Um artigo com duas laudas, diz ela, sobre a minha trajetória de vida ... com mais de 50 anos de estrada, tento escapar... não tenho muito a contar, penso. Fernanda insiste – “fale de sua vida profissional, de sua trajetória como militante” - e eu só me ligo no prazo. Tento me esquivar não gosto de falar na primeira pessoa. Prefiro relatar fatos de outros, escrever notícias, reportagens... tenho outros artigos para fazer e ouço Fernanda dizendo que o prazo de entrega é, também, para “ontem”.
Por que será que é sempre assim? Dezembro parece ser o mês das conclusões apressadas. O décimo segundo mês do ano é apressado pelos sinos de natal. Tudo tem que se definir antes do dia 25. é a revista que está para “fechar”, é o relatório que tem para estar pronto... é este texto que deve chegar na segunda-feira, via on-line, em Brasília...
E com esse inicio, a história da minha vida começa a ser construída, vou aproveitar para exorcizar alguns fantasmas que teimam em me acompanhar e fazer desse texto um reencontro com a minha memória e ela aponta que a luta pela minha independência começou muito cedo.
Com quatro anos já fugia de casa. As saídas para a rua me fascinam até hoje. Cruzava com minhas curtas pernas a travessa que ligava a minha rua com a casa-grande, onde minha mãe era cozinheira, doceira, lavadeira e passadeira. E ali ficava quietinha e escondida no jardim com flores cujos nomes não lembro mais. Entre o cinco filhos que teve, minha mãe fez uma escolha que definiu meu destino. Ela não lia nem sequer escrevia seu nome, mas atenta sabia das coisas do mundo, das batidas, dos tambores, dos segredos das ervas e das benzeduras. Percebeu nas minhas fugas infantis que eu definia o caminho e o pouso que buscava. E seu coração abriu mão de mim... sábia a minha mãe. Levei muitos anos para entendê-la e compreender o porque de seu gesto. Hoje sei.
Não vaguei pelo mundo porque a casa-grande me abrigou. Cabelos trançados e fitas coloridas, vestidos floridos. Lembranças de minha infância. A menina ganhou corpo e cresceu. Minha história não é muito diferente das muitas adolescentes negras criadas por famílias brancas. Já vi semelhanças em tantos outro relatos de mulheres negras bem-sucedidas.
O trabalho da casa era dividido entre os adultos na propor cão da idade e à medida que se crescia. Venezianas escovadas. De joelho, palhas de aço passadas no assoalho de madeira. O brilho da cera no chão e nos móveis antigos. Múltiplas vidraças lavadas e várias varrições nas calçadas da rua. As faxinas, o aprender nas lidas da cozinha. O brincar solitário no quintal entre pintos, patos e galinhas. As laranjas e bergamotas descascadas sob o Sol morno de outono, as estações virando... e o ciclo da vida se fazendo, aos oito anos fui alfabetizada. A descoberta das letras me levou a muitos livros e eles foram o passaporte para se concretizar muitos de meus sonhos.
Entre as lidas do trabalho domestico fui traçando passo a passo, meu roteiro estudantil: inicialmente o Primário no Grupo Escolar Luciana de Abreu – que mais tarde vim a descobrir que era uma professora negra que quando bebê foi abandonada na rosa dos expostos na Santa Casa de Misericórdia, depois o Ginásio marcado pelo latim, mais tarde a opção pelo Clássico porque odiava Matemática, atualmente nem tanto, e a entrada na Universidade publica vencendo a barreira concorrida do vestibular e da prova especifica para o jornalismo.
A profissão – a escolha da profissão foi marcante. Há 37 anos, ao contrário de hoje as mulheres eram poucas no mercado jornalístico. E negras ainda mais, como hoje são em números reduzidíssimos. O conselho familiar branco se opôs, com vigor, à minha vocação e recomendava o caminho considerado mais apropriado para “as moças negras e direitas”: o Magistério. “ Vá ser professora menina. Jornalismo jamais; é profissão de homem!”, diziam.
A rebeldia juvenil, no entanto mostrou sua cara e rompeu com o padrão. E quando o regime militar arrochava os direitos dos cidadãos civis no Brasil, entrei na faculdade de Biblioteconomia e Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. O ano de 1968 e as transformações no mundo, mais uma vez aconteciam. No bar do Antonio – ainda existe na UFRGS – e no prédio da antiga Filosofia divergíamos do regime, sofríamos a repressão do DOPS e vimos companheiros nossos desaparecer nos porões da ditadura. Aprendemos muito...
Três anos depois com diploma na mão, era a primeira mulher negra a entrar na Redação do Jornal do Comércio, meu primeiro emprego. E por alguns anos esta ação se repitira nos muitos veículos de comunicação de Porto Alegre por onde passei: mulher e negra.
Escalada para cobertura jornalística esportiva, faço escola no reduto masculino do futsal, do ciclismo, do vôlei, do basquete e do automobilismo.
Em busca de comentário imediatos entro nos vestiário, nos intervalos das partidas, junto com meus colegas, homens, constrangendo, de inicio, técnicos e atletas, mas rompendo barreiras de gênero. Com o passar do tempo eles se acostumam com a constante presença de uma repórter negra. As coberturas esportivas e de carnaval – uma outra paixão – são um marco na minha carreira profissional.
Dos clubes sociais e esportivos, várias homenagens ao meu trabalho. Associações esportivas que antes me barravam pelo fato de ser negra, abriam suas portas... é claro que isso só acontecia quando eu mostrava o crachá do veiculo onde trabalhava,ou então quando o porteiro assistia a minha chegada no carro da empresa.
Por 16 anos sem interrupções, acompanhei de perto a carreira de vários ídolos do esporte amador gaúcho e brasileiro. Concomitante com o jornalismo esportivo me dediquei ao serviço público, atuando na área de assessoria de imprensa e divulgando as atividades da área social do Governo Federal. Apesar de ter feito todo o projeto para a montagem e Assessoria de Imprensa, a chefia só será exercida por um período de um ano, exatamente, quando a instituição está para fechar suas portas.
A militante – a militância no movimento negro é fruto do despertar para a questão racial e da constatação de que era preciso fazer mais para rompermos com o racismo e discriminação racial existentes no País. Também foi ressonância das leituras e da motivação que vinha das mobilizações que eferveciam no continente africano e na América do Norte. “black is beautiful”. Lelia Gonzales, Oswaldo de Camargo, Florestan Fernandes, Abdias Nascimento, Martins Luther King, Nelson Mandela, Agostinho Neto, Samora Machel, Ângela Davis, Steve Biko, Malcon X... entre tantos outros. Nomes admirados e guias para nossa retomada do movimento negro no país. O engajamento na luta acontece no inicio dos anos 70. Participo dos encontros do Grupo Palmares, acompanho de perto a proposição para que o 20 de Novembro seja um contraponto ao 13 de Maio. Discussões, reuniões, viajens para São Paulo, para o Rio de Janeiro, Salvador. A mochila nas costas e o fomento pela criação do Movimento Negro Unificado. De lá para cá, muita caminhada. Contatos com companheiros jornalistas negros, a convergência de idéias para a publicação da Revista Tição, um marco na imprensa alternativa gaúcha na década de 70 e até hoje lembrada. Divergências, o vício do reunismo, rompimentos,e lá vamos para outros grupos – Rua do Perdão, YaDdu entre tantos outros – em busca de projetos e ações concretas para incrementar a luta pela igualdade social.
Em toda esta minha trajetória, eu gostaria de ter tido mais tempo de me dedicar à causa, bem como de ter estudado e ter pesquisado mais, mas a luta pela sobrevivência prevaleceu. Há muito mais para contar, como a vivencia por um período de quatro anos dividindo a sociedade de uma empresa na área de comunicação social no interior do Estado num município que tem sua origem, no inicio do século XX, marcada pelos projetos que incentivaram e favoreceram a vinda de imigrantes italianos, alemães, poloneses, russos e judeus em detrimento à mão-de-obra negra.
De volta a Porto Alegre, a retomada com fôlego jornalístico, através da assessoria de imprensa para Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras e pela participação no projeto Negro em Preto e Branco – A História fotográfica da População Negra em Porto Alegre, idealizado e fotografado pela fotógrafa negra Irene Santos, sucesso editorial gaúcho do segundo semestre de 2005. Aos 55 anos casada, mãe de Juliano, 21 anos, sinto-me renovada e estimulada a trabalhar sempre e ser, sem perder o rumo, cada vez mais militante.
Revista Palmares: Cultura Afro-brasileira,
Editoria Fala Negra, página 84-86
Foto: Irene Santos
Jornalista, militante do Movimento Negro desde a década de 70, editora da revista Tição. Atuou por 16 anos no jornal Zero Hora, foi editora responsável pelos projetos especiais do jornal A Voz da Serra. Assessora de imprensa de Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras/RS.
O telefone toca. Largo o teclado do computador e atendo. É a Fernanda, da Fundação Palmares me ligando. Às voltas com inúmeras tarefas e com o pensamento nos prazos a cumprir, demoro a atender o que ela me pede. Um artigo com duas laudas, diz ela, sobre a minha trajetória de vida ... com mais de 50 anos de estrada, tento escapar... não tenho muito a contar, penso. Fernanda insiste – “fale de sua vida profissional, de sua trajetória como militante” - e eu só me ligo no prazo. Tento me esquivar não gosto de falar na primeira pessoa. Prefiro relatar fatos de outros, escrever notícias, reportagens... tenho outros artigos para fazer e ouço Fernanda dizendo que o prazo de entrega é, também, para “ontem”.
Por que será que é sempre assim? Dezembro parece ser o mês das conclusões apressadas. O décimo segundo mês do ano é apressado pelos sinos de natal. Tudo tem que se definir antes do dia 25. é a revista que está para “fechar”, é o relatório que tem para estar pronto... é este texto que deve chegar na segunda-feira, via on-line, em Brasília...
E com esse inicio, a história da minha vida começa a ser construída, vou aproveitar para exorcizar alguns fantasmas que teimam em me acompanhar e fazer desse texto um reencontro com a minha memória e ela aponta que a luta pela minha independência começou muito cedo.
Com quatro anos já fugia de casa. As saídas para a rua me fascinam até hoje. Cruzava com minhas curtas pernas a travessa que ligava a minha rua com a casa-grande, onde minha mãe era cozinheira, doceira, lavadeira e passadeira. E ali ficava quietinha e escondida no jardim com flores cujos nomes não lembro mais. Entre o cinco filhos que teve, minha mãe fez uma escolha que definiu meu destino. Ela não lia nem sequer escrevia seu nome, mas atenta sabia das coisas do mundo, das batidas, dos tambores, dos segredos das ervas e das benzeduras. Percebeu nas minhas fugas infantis que eu definia o caminho e o pouso que buscava. E seu coração abriu mão de mim... sábia a minha mãe. Levei muitos anos para entendê-la e compreender o porque de seu gesto. Hoje sei.
Não vaguei pelo mundo porque a casa-grande me abrigou. Cabelos trançados e fitas coloridas, vestidos floridos. Lembranças de minha infância. A menina ganhou corpo e cresceu. Minha história não é muito diferente das muitas adolescentes negras criadas por famílias brancas. Já vi semelhanças em tantos outro relatos de mulheres negras bem-sucedidas.
O trabalho da casa era dividido entre os adultos na propor cão da idade e à medida que se crescia. Venezianas escovadas. De joelho, palhas de aço passadas no assoalho de madeira. O brilho da cera no chão e nos móveis antigos. Múltiplas vidraças lavadas e várias varrições nas calçadas da rua. As faxinas, o aprender nas lidas da cozinha. O brincar solitário no quintal entre pintos, patos e galinhas. As laranjas e bergamotas descascadas sob o Sol morno de outono, as estações virando... e o ciclo da vida se fazendo, aos oito anos fui alfabetizada. A descoberta das letras me levou a muitos livros e eles foram o passaporte para se concretizar muitos de meus sonhos.
Entre as lidas do trabalho domestico fui traçando passo a passo, meu roteiro estudantil: inicialmente o Primário no Grupo Escolar Luciana de Abreu – que mais tarde vim a descobrir que era uma professora negra que quando bebê foi abandonada na rosa dos expostos na Santa Casa de Misericórdia, depois o Ginásio marcado pelo latim, mais tarde a opção pelo Clássico porque odiava Matemática, atualmente nem tanto, e a entrada na Universidade publica vencendo a barreira concorrida do vestibular e da prova especifica para o jornalismo.
A profissão – a escolha da profissão foi marcante. Há 37 anos, ao contrário de hoje as mulheres eram poucas no mercado jornalístico. E negras ainda mais, como hoje são em números reduzidíssimos. O conselho familiar branco se opôs, com vigor, à minha vocação e recomendava o caminho considerado mais apropriado para “as moças negras e direitas”: o Magistério. “ Vá ser professora menina. Jornalismo jamais; é profissão de homem!”, diziam.
A rebeldia juvenil, no entanto mostrou sua cara e rompeu com o padrão. E quando o regime militar arrochava os direitos dos cidadãos civis no Brasil, entrei na faculdade de Biblioteconomia e Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. O ano de 1968 e as transformações no mundo, mais uma vez aconteciam. No bar do Antonio – ainda existe na UFRGS – e no prédio da antiga Filosofia divergíamos do regime, sofríamos a repressão do DOPS e vimos companheiros nossos desaparecer nos porões da ditadura. Aprendemos muito...
Três anos depois com diploma na mão, era a primeira mulher negra a entrar na Redação do Jornal do Comércio, meu primeiro emprego. E por alguns anos esta ação se repitira nos muitos veículos de comunicação de Porto Alegre por onde passei: mulher e negra.
Escalada para cobertura jornalística esportiva, faço escola no reduto masculino do futsal, do ciclismo, do vôlei, do basquete e do automobilismo.
Em busca de comentário imediatos entro nos vestiário, nos intervalos das partidas, junto com meus colegas, homens, constrangendo, de inicio, técnicos e atletas, mas rompendo barreiras de gênero. Com o passar do tempo eles se acostumam com a constante presença de uma repórter negra. As coberturas esportivas e de carnaval – uma outra paixão – são um marco na minha carreira profissional.
Dos clubes sociais e esportivos, várias homenagens ao meu trabalho. Associações esportivas que antes me barravam pelo fato de ser negra, abriam suas portas... é claro que isso só acontecia quando eu mostrava o crachá do veiculo onde trabalhava,ou então quando o porteiro assistia a minha chegada no carro da empresa.
Por 16 anos sem interrupções, acompanhei de perto a carreira de vários ídolos do esporte amador gaúcho e brasileiro. Concomitante com o jornalismo esportivo me dediquei ao serviço público, atuando na área de assessoria de imprensa e divulgando as atividades da área social do Governo Federal. Apesar de ter feito todo o projeto para a montagem e Assessoria de Imprensa, a chefia só será exercida por um período de um ano, exatamente, quando a instituição está para fechar suas portas.
A militante – a militância no movimento negro é fruto do despertar para a questão racial e da constatação de que era preciso fazer mais para rompermos com o racismo e discriminação racial existentes no País. Também foi ressonância das leituras e da motivação que vinha das mobilizações que eferveciam no continente africano e na América do Norte. “black is beautiful”. Lelia Gonzales, Oswaldo de Camargo, Florestan Fernandes, Abdias Nascimento, Martins Luther King, Nelson Mandela, Agostinho Neto, Samora Machel, Ângela Davis, Steve Biko, Malcon X... entre tantos outros. Nomes admirados e guias para nossa retomada do movimento negro no país. O engajamento na luta acontece no inicio dos anos 70. Participo dos encontros do Grupo Palmares, acompanho de perto a proposição para que o 20 de Novembro seja um contraponto ao 13 de Maio. Discussões, reuniões, viajens para São Paulo, para o Rio de Janeiro, Salvador. A mochila nas costas e o fomento pela criação do Movimento Negro Unificado. De lá para cá, muita caminhada. Contatos com companheiros jornalistas negros, a convergência de idéias para a publicação da Revista Tição, um marco na imprensa alternativa gaúcha na década de 70 e até hoje lembrada. Divergências, o vício do reunismo, rompimentos,e lá vamos para outros grupos – Rua do Perdão, YaDdu entre tantos outros – em busca de projetos e ações concretas para incrementar a luta pela igualdade social.
Em toda esta minha trajetória, eu gostaria de ter tido mais tempo de me dedicar à causa, bem como de ter estudado e ter pesquisado mais, mas a luta pela sobrevivência prevaleceu. Há muito mais para contar, como a vivencia por um período de quatro anos dividindo a sociedade de uma empresa na área de comunicação social no interior do Estado num município que tem sua origem, no inicio do século XX, marcada pelos projetos que incentivaram e favoreceram a vinda de imigrantes italianos, alemães, poloneses, russos e judeus em detrimento à mão-de-obra negra.
De volta a Porto Alegre, a retomada com fôlego jornalístico, através da assessoria de imprensa para Maria Mulher – Organização de Mulheres Negras e pela participação no projeto Negro em Preto e Branco – A História fotográfica da População Negra em Porto Alegre, idealizado e fotografado pela fotógrafa negra Irene Santos, sucesso editorial gaúcho do segundo semestre de 2005. Aos 55 anos casada, mãe de Juliano, 21 anos, sinto-me renovada e estimulada a trabalhar sempre e ser, sem perder o rumo, cada vez mais militante.