1.04.2007
NOVOS QUILOMBOS DE ZUMBI
por Deivison Campos, jornalista e professor da Universidade Luterana do Brasil, publicado originalmente na Revista Comemorativa aos 35 anos da Consciência Negra - 2006 - Seppir/Governo Federal.
As comemorações do dia 20 de novembro surgem, nesse cenário, em contraposição ao treze de maio. Simbolicamente, pretendiam romper com a idéia de liberdade concedida na abolição por uma concepção de liberdade conquistada, tendo em Palmares e Zumbi seu referente. Através da evocação da imagem do quilombo, propunham reestabelecer uma memória coletiva, guardada principalmente na oralidade para transformá-la em memória pública. Buscavam demonstrar, com isso, que havia mais a ser contado do que nos era dado a conhecer pela cultura oficial.
A revisão histórica, proposta pelo Grupo Palmares de Porto Alegre, em 1971, objetivava recuperar a auto-estima étnica e, com isso, tirar a maioria dos negros do imobilismo político e da acomodação aos espaços concedidos por uma sociedade desigual. Os jovens universitários que fundaram o grupo (Oliveira Silveira,Ilmo da Silva e Vilmar Nunes) buscavam uma motivação e uma referência local para canalizar as influências dos movimentos negros internacionais, da contracultura, principalmente a valorização da diferença, e suas próprias inquietações pessoais. O mito de Zumbi e de Palmares é reatualizado num uso funcionalista, para atender essa necessidade.
As políticas de urbanização, implementadas em Porto Alegre, a partir da década de 40, influenciaram diretamente na rearticulação do movimento negro, que havia sido desarticulado no golpe de 1964. As comunidades tradicionais foram para as áreas ainda mais distantes. Em seu fluxo para o trabalho e lazer, tendo o Centro como referência de transporte coletivo, os negros acabaram por criar grupos de interação nesse espaço de convergência.
Ao mesmo tempo em que provocou a pulverização das antigas comunidades em regiões mais periféricas e a desagregação de suas populações, o processo de urbanização criou demandas de identificação para os negros, que antes eram atendidas especialmente. Os referenciais de lugar não mais existiam, restava a referenciação simbólica.
Na conjunção desses elementos simbólicos com a busca por soluções às várias demandas socioeconômicas vivenciadas pela população negra, um grupo de jovens universitários organiza o Grupo Palmares em 1971. A entidade surge com a proposta de construir um novo caminho para o atendimento dessas necessidades sem, com isso, ter que abrir mão de sua condição étnica.
O surgimemnto e as articulações do Grupo Palmares devem ser compreendidos dentro de seu tempo e do contexto local e global. Na década de 70, desemboca uma série de processos, movimentos e manifestações, iniciados com o final da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, a ditadura militar acabava com os últimos focos de oposição armada contra o regime, desarticulando toda a "esquerda" que havia optado pela guerrilha como alternativa de construção de uma nova sociedade. A ofensiva contra esses grupos abriu espaço para outros movimentos que se posicionavam, igualmente, contra a ditadura, mas buscavam atuar dentro da esfera legal. Muitos desses grupos enfatizavam a diferença - feminino, homossexual, negro, etc.
A ação de subverter à esfera política e social, realizada pelo Palmares e pelo movimento negro como um todo na década de 70, deu-se principalmente pelo viés cultural, em função do discurso romper com a idéia de uma cultura nacional oficial. A subversão do discurso oficialista deu-se através das três iniciativas: a releitura da história do país, a reelaboração da identidade étnica e a tradução dos ideais dos movimentos negros da diáspora e mesmo na África.
O grupo baseia sua ação na proposta de rever a história brasileira para, com isso, demonstrar aos negros o passado de resistência às diferentes realidades opressoras. Na visão do grupo, o contexto de opressão se mantinha intocado. Os negros, no entanto, haviam se acomodado à marginalização imposta pela estrutura social. O caminho apresentado pelo grupo para a socialização plena do negro na sociedade propunha a retomada dessa tradição de resistência, simbolizada na história pelo Quilombo dos Palmares.
A releitura histórica se dá, num primeiro momento, pela exaltação da biografia de negros que participaram ativamente da história do Brasil, passando num segundo momento a recuperar iniciativas de resistência ao escravismo. Palmares e Zumbi, símbolos desde o primeiro momento, tornam-se também modelos de estruturação de uma nova relação entre os negros e de negociação com a sociedade: resistente e comunitarista.
O Grupo Palmares identifica no quilombo o referencial para construção dessa nova identidade, baseada numa idéia de resistência à realidade opressora, principalmente, no plano simbólico. As ações dos quilombolas, segundo o livro Mini-História do Negro Brasileiro lançado pelo grupo em 1976, são "uma prova de resistência" cultural do povo negro, cujas tradições sobrevivem apesar de submetidas a perseguições no passado e a intença ação descaracterizadora ainda hoje.
Afirmam ainda, através do manifesto de 1974, publicada no Jornal do Brasil, que "Não tendo como outros grupos étnicos, a proteção da tradição histórica, [grande parte dos negros] assimilam o sistema de valores do branco esquecendo seus próprios valores". A partir desse pressuposto, organiza-se a estratégia de, através da revisão historiográfica, "reavivar as verdadeiras raízes culturais do negro brasileiro" (idem), porque "tomando consciência desses fatos [...] vai participar de outra maneira da sociedade brasileira, auto-valorizando-se o que é uma atitude mais positiva do que se integrar às custas de uma alienação cultural". (matéria publicada no Jornal do Brasil, em 13/05/1973).
As informações sobre os movimentos negros na diáspora e na Africa também serviram para dinamizar o processo. As vitórias de movimentos nacionais contra os colonizadores na África e por, outro lado, os movimentos pelos direitos civis nos EUA mostraram ser possível resistir e vencer em estruturas bem mais hostis dos que as enfrentadas no Brasil.
Ao traduzirem essas manifestações e não simplesmente imitá-las, o movimento negro brasileiro reforçou a idéia de uma cultura negra resistente e da existência de um poder negro, ligado a uma tradição refenciada numa África mítica. Se o retorno não acontece na prática, reforça simbolicamente o processo de reafricanização dos negros da diáspora, incluindo o Brasil, consolidando o sentimento de pertencimento a uma origem comum, a base da etnicidade.
A centralidade dos meios de comunicação na cultura contemporânea, a partir desse período, deve ser levada em conta por ter possibilitado fluxo de informações. Por outro lado, é através da imprensa que o Palmares consegue sua legitimação e reconhecimento. Num primeiro momento, foi utilizada como fórum de divulgação de pesquisas passando depois do primeiro manifesto, publicado em 1972 , a ser utilizada como campo de disputa. Esse uso da imprensa pode ser considerado subversivo, pois já nesse período, havia se tornado o principal espaço público da sociedade e, portanto, umas das esferas de sustentação do discurso dominante.
O primeiro ato evocativo ao 20 de Novembro, em 1971, foi restrito e localizado. A estadualização da proposta ocorreu no ano seguinte com a publicação de um caderno especial no Jornal Zero Hora. O caderno deu visibilidade ao grupo que em 13 de maio de 1973 concedeu uma entrevista ao jornal do Brasil, denunciando sua contrariedade as comemorações e ao simbolismo do 13 de maio. Inicia aí o processo de nacionalização, que é reforçado pela publicação do manifesto de 20 de Novembro de 1974 no mesmo jornal e pela realização, a partir de 1975, de semanas do negro por entidades paulistas e cariocas. A consolidação nacional da data ocorre com a criação da MNU, em 1978, que adota a proposta do 20 de Novembo.
A idéia do movimento permeia a trajetória do Grupo Palmares, considerando-se a questão espacial (da periferia ao centro), temporal (atualização de um passado idealizado) e política (da acomodação à ação). Também um posicionamento subversivo, no sentido de enfrentamento no sentido de modificar uma situação pré-existente, está presente desde o surgimento do grupo em julho de 1971, a partir de reuniões realizadas na Rua dos Andradas, perto do local onde hoje é denominado Esquina Democrática, em Porto Alegre.
As transformações buscadas pelos Palmares podem ser resumidas na possibilidade dos negros ocuparem novos lugares sociais do que os concedidos historicamente. A proposta mantém-se até hoje como devir, por alterar o lugar de memória do negro na formação social brasileira e ameaçar o status quo das elites. Ao completar 35 anos de luta pelo direito de ser negro e cidadão brasileiro, os novos quilombolas de Zumbi mantêm as tarefas histórica apontadas por Florestan Fernandes, em seu estudo. A integração do negro na sociedade de classes: "desencadear no Brasil a modernização do sistema de relações raciais; e de provar que os homens precisam identificar-se de forma íntegra e consciente, com os valores que encaram a ordem legal escolhida".
por Deivison Campos, jornalista e professor da Universidade Luterana do Brasil, publicado originalmente na Revista Comemorativa aos 35 anos da Consciência Negra - 2006 - Seppir/Governo Federal.
As comemorações do dia 20 de novembro surgem, nesse cenário, em contraposição ao treze de maio. Simbolicamente, pretendiam romper com a idéia de liberdade concedida na abolição por uma concepção de liberdade conquistada, tendo em Palmares e Zumbi seu referente. Através da evocação da imagem do quilombo, propunham reestabelecer uma memória coletiva, guardada principalmente na oralidade para transformá-la em memória pública. Buscavam demonstrar, com isso, que havia mais a ser contado do que nos era dado a conhecer pela cultura oficial.
A revisão histórica, proposta pelo Grupo Palmares de Porto Alegre, em 1971, objetivava recuperar a auto-estima étnica e, com isso, tirar a maioria dos negros do imobilismo político e da acomodação aos espaços concedidos por uma sociedade desigual. Os jovens universitários que fundaram o grupo (Oliveira Silveira,Ilmo da Silva e Vilmar Nunes) buscavam uma motivação e uma referência local para canalizar as influências dos movimentos negros internacionais, da contracultura, principalmente a valorização da diferença, e suas próprias inquietações pessoais. O mito de Zumbi e de Palmares é reatualizado num uso funcionalista, para atender essa necessidade.
As políticas de urbanização, implementadas em Porto Alegre, a partir da década de 40, influenciaram diretamente na rearticulação do movimento negro, que havia sido desarticulado no golpe de 1964. As comunidades tradicionais foram para as áreas ainda mais distantes. Em seu fluxo para o trabalho e lazer, tendo o Centro como referência de transporte coletivo, os negros acabaram por criar grupos de interação nesse espaço de convergência.
Ao mesmo tempo em que provocou a pulverização das antigas comunidades em regiões mais periféricas e a desagregação de suas populações, o processo de urbanização criou demandas de identificação para os negros, que antes eram atendidas especialmente. Os referenciais de lugar não mais existiam, restava a referenciação simbólica.
Na conjunção desses elementos simbólicos com a busca por soluções às várias demandas socioeconômicas vivenciadas pela população negra, um grupo de jovens universitários organiza o Grupo Palmares em 1971. A entidade surge com a proposta de construir um novo caminho para o atendimento dessas necessidades sem, com isso, ter que abrir mão de sua condição étnica.
O surgimemnto e as articulações do Grupo Palmares devem ser compreendidos dentro de seu tempo e do contexto local e global. Na década de 70, desemboca uma série de processos, movimentos e manifestações, iniciados com o final da Segunda Guerra Mundial. No Brasil, a ditadura militar acabava com os últimos focos de oposição armada contra o regime, desarticulando toda a "esquerda" que havia optado pela guerrilha como alternativa de construção de uma nova sociedade. A ofensiva contra esses grupos abriu espaço para outros movimentos que se posicionavam, igualmente, contra a ditadura, mas buscavam atuar dentro da esfera legal. Muitos desses grupos enfatizavam a diferença - feminino, homossexual, negro, etc.
A ação de subverter à esfera política e social, realizada pelo Palmares e pelo movimento negro como um todo na década de 70, deu-se principalmente pelo viés cultural, em função do discurso romper com a idéia de uma cultura nacional oficial. A subversão do discurso oficialista deu-se através das três iniciativas: a releitura da história do país, a reelaboração da identidade étnica e a tradução dos ideais dos movimentos negros da diáspora e mesmo na África.
O grupo baseia sua ação na proposta de rever a história brasileira para, com isso, demonstrar aos negros o passado de resistência às diferentes realidades opressoras. Na visão do grupo, o contexto de opressão se mantinha intocado. Os negros, no entanto, haviam se acomodado à marginalização imposta pela estrutura social. O caminho apresentado pelo grupo para a socialização plena do negro na sociedade propunha a retomada dessa tradição de resistência, simbolizada na história pelo Quilombo dos Palmares.
A releitura histórica se dá, num primeiro momento, pela exaltação da biografia de negros que participaram ativamente da história do Brasil, passando num segundo momento a recuperar iniciativas de resistência ao escravismo. Palmares e Zumbi, símbolos desde o primeiro momento, tornam-se também modelos de estruturação de uma nova relação entre os negros e de negociação com a sociedade: resistente e comunitarista.
O Grupo Palmares identifica no quilombo o referencial para construção dessa nova identidade, baseada numa idéia de resistência à realidade opressora, principalmente, no plano simbólico. As ações dos quilombolas, segundo o livro Mini-História do Negro Brasileiro lançado pelo grupo em 1976, são "uma prova de resistência" cultural do povo negro, cujas tradições sobrevivem apesar de submetidas a perseguições no passado e a intença ação descaracterizadora ainda hoje.
Afirmam ainda, através do manifesto de 1974, publicada no Jornal do Brasil, que "Não tendo como outros grupos étnicos, a proteção da tradição histórica, [grande parte dos negros] assimilam o sistema de valores do branco esquecendo seus próprios valores". A partir desse pressuposto, organiza-se a estratégia de, através da revisão historiográfica, "reavivar as verdadeiras raízes culturais do negro brasileiro" (idem), porque "tomando consciência desses fatos [...] vai participar de outra maneira da sociedade brasileira, auto-valorizando-se o que é uma atitude mais positiva do que se integrar às custas de uma alienação cultural". (matéria publicada no Jornal do Brasil, em 13/05/1973).
As informações sobre os movimentos negros na diáspora e na Africa também serviram para dinamizar o processo. As vitórias de movimentos nacionais contra os colonizadores na África e por, outro lado, os movimentos pelos direitos civis nos EUA mostraram ser possível resistir e vencer em estruturas bem mais hostis dos que as enfrentadas no Brasil.
Ao traduzirem essas manifestações e não simplesmente imitá-las, o movimento negro brasileiro reforçou a idéia de uma cultura negra resistente e da existência de um poder negro, ligado a uma tradição refenciada numa África mítica. Se o retorno não acontece na prática, reforça simbolicamente o processo de reafricanização dos negros da diáspora, incluindo o Brasil, consolidando o sentimento de pertencimento a uma origem comum, a base da etnicidade.
A centralidade dos meios de comunicação na cultura contemporânea, a partir desse período, deve ser levada em conta por ter possibilitado fluxo de informações. Por outro lado, é através da imprensa que o Palmares consegue sua legitimação e reconhecimento. Num primeiro momento, foi utilizada como fórum de divulgação de pesquisas passando depois do primeiro manifesto, publicado em 1972 , a ser utilizada como campo de disputa. Esse uso da imprensa pode ser considerado subversivo, pois já nesse período, havia se tornado o principal espaço público da sociedade e, portanto, umas das esferas de sustentação do discurso dominante.
O primeiro ato evocativo ao 20 de Novembro, em 1971, foi restrito e localizado. A estadualização da proposta ocorreu no ano seguinte com a publicação de um caderno especial no Jornal Zero Hora. O caderno deu visibilidade ao grupo que em 13 de maio de 1973 concedeu uma entrevista ao jornal do Brasil, denunciando sua contrariedade as comemorações e ao simbolismo do 13 de maio. Inicia aí o processo de nacionalização, que é reforçado pela publicação do manifesto de 20 de Novembro de 1974 no mesmo jornal e pela realização, a partir de 1975, de semanas do negro por entidades paulistas e cariocas. A consolidação nacional da data ocorre com a criação da MNU, em 1978, que adota a proposta do 20 de Novembo.
A idéia do movimento permeia a trajetória do Grupo Palmares, considerando-se a questão espacial (da periferia ao centro), temporal (atualização de um passado idealizado) e política (da acomodação à ação). Também um posicionamento subversivo, no sentido de enfrentamento no sentido de modificar uma situação pré-existente, está presente desde o surgimento do grupo em julho de 1971, a partir de reuniões realizadas na Rua dos Andradas, perto do local onde hoje é denominado Esquina Democrática, em Porto Alegre.
As transformações buscadas pelos Palmares podem ser resumidas na possibilidade dos negros ocuparem novos lugares sociais do que os concedidos historicamente. A proposta mantém-se até hoje como devir, por alterar o lugar de memória do negro na formação social brasileira e ameaçar o status quo das elites. Ao completar 35 anos de luta pelo direito de ser negro e cidadão brasileiro, os novos quilombolas de Zumbi mantêm as tarefas histórica apontadas por Florestan Fernandes, em seu estudo. A integração do negro na sociedade de classes: "desencadear no Brasil a modernização do sistema de relações raciais; e de provar que os homens precisam identificar-se de forma íntegra e consciente, com os valores que encaram a ordem legal escolhida".